Domingo, 26 de Março de 2006

Um pequena insinceridade


'Rebirth' de Genggu Liu
"Rebirth"  de Genggu Liu


Muitas coisas nós nem temos coragem de contar por aí, assim de repente, e nem de caso pensado, pois sempre corremos o risco de sermos mal interpretados ou, mesmo, de sermos chamados de mentirosos, ali, na bucha. Por isso, nesse mundão, de vez em quando, evito contar alguns causos fantásticos, mas, se a vida é em si fantástica... E nunca ninguém interpretou nadica de nada de seu sentido ou qual a missão verdadeira do homem, e coisas de Deus ou do diabo, e religiões, e mulas sem cabeça... Eu, de minha parte, não acredito em nada nem sou supersticioso, mas, por via das dúvidas, evito transgredir tais regras, pois nunca se sabe...

Pois bem, certo dia, e lá se vão alguns anos, eu estava chegando de uma viagem de Curitiba e, na rodoviária do Rio de Janeiro, na hora em que estava acenando para um táxi, assim, meio esquisito, ouvi uma voz, falando baixinho, bem atrás de mim:

- Mas, Deus do céu, jamais poderia imaginar... Você, depois de tantos anos?!...

Olhei a criatura e levei um bom tempo para me concentrar o bastante no reconhecimento e, mesmo assim, fiquei na dúvida. Calado, parei a olhar, esperando uma identificação mais segura, quando ela, meio assustada ou meio envergonhada, sei lá!, também um pouco indecisa, falou:

- Pedro, sou eu, a Denise. Lembra-se?... Fomos colegas e quase namoradinhos, no colégio. Puxa! Você não mudou nada, se não fosse uns dois cabelos brancos!...

Fiquei petrificado, pois aquela criatura, envelhecida, prematuramente, e esfacelada, sei lá por quantos sofrimentos e andanças, não poderia ser nunca a deusa de meus sonhos, a rainha dos calouros, a mais cobiçada criatura de meus tempos de estudante... Nossa!... Ela estava, simplesmente, assustadora... Aí, me bateu que ela tinha notado minha decepção, quando ela confirmou, na horinha:

- Acho que te assustei. Será que estou tão velha e feia, assim?... Pela tua cara, já dá até para notar que sim. Terei mudado tanto?...

E como eu ia disfarçar uma situação daquelas, que, como ela mesma dizia, estava estampada em mim? E o pior é que eu sentia até mau cheiro, sei lá de onde vinha, se de seu hálito, sei lá!... Nem queria pensar a não ser numa resposta rápida. Então, falei, com a maior cara de pau:

- Olha, né nada disso, não. Tu estás bonita, como sempre, aquela moça linda que encantava todo o colégio e nossa cidadezinha. 'Inda és a querida e linda Denise de meus amores...

Penso que disse mais algumas mentiras e menti, e menti muito.
Estava mentindo, sem parar, até que aconteceu algo estranho, um barulho, um tropeção, uma luz não sei dizer exatamente como. Fiquei meio cego com a claridade, coloquei a mão nos olhos e esperei a luminosidade passar...
E foi passando e meu entendimento foi complicando, pois, ali, no lugar daquela mulher quase pasmosa, reapareceu a antiga Denise, só que um pouco mais velha, linda, madura, segura, que me olhou bem nos olhos e, com lágrimas doces e uma expressão de infinita gratidão, beijou-me o rosto e me disse:

- Obrigada, Pedro. Acabaste de me salvar!!!

Fiquei, ali, petrificado, e ela, com um sorriso de ressurreição, foi sumindo no meio da multidão da rodoviária...



De: João Costa Filho



publicado por jpcfilho às 20:48
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De Anónimo a 27 de Março de 2006 às 01:51
Oh, Maria, não tão verdadeira, mas o que é verdadeiro? obrigado. beijos..espelhodesombras
</a>
(mailto:jpcfilho@sapo.pt)


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